Educação a base que poucos têm acesso

Qualidade para poucos não é qualidade

Painel realizado na Bett Brasil destaca a importância de reconhecer e considerar os perfis socioeconômicos e raciais dos estudantes para garantir que ninguém seja deixado para trás durante o processo educacional

 

Em períodos de divulgação do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), é comum que as primeiras análises tragam um resumo de quem “avançou” e de quem “piorou” nos resultados. No entanto, mesmo entre as redes que demonstram uma curva ascendente, escondem-se as desigualdades que marcam profundamente o sistema educacional brasileiro.

O painel “Qualidade para poucos não é qualidade”, realizado na nova seção dedicada à educação pública da Bett Brasil, uma conferência de educação que ocorre em São Paulo (SP) até a próxima sexta-feira, trouxe reflexões sobre a importância de prestar atenção àqueles que ficam para trás. Como debatedores, Chico Soares, ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e a neurocientista Natalia Mota apresentaram novos argumentos ao debate e como encontrar evidências que até recentemente eram ignoradas.

De acordo com o IDeA (Indicador de Desigualdades e Aprendizagens), uma iniciativa que contou com a participação de Chico e que se baseia no nível de aprendizagem em língua portuguesa e matemática no 5° e no 9° ano, apenas 0,1% dos municípios brasileiros combinam alto nível de aprendizagem e boas condições de equidade. “Qualidade para poucos não é qualidade. Precisamos incorporar isso no Brasil. A Constituição é clara. A educação existe para que o indivíduo possa aprender, florescer e entrar no mercado de trabalho”, afirma.

Esse processo, segundo Chico, só é possível com a mediação da escola. “Quando se olha para dados de aprendizagem e de permanência na escola, assusta-se com o nível de desigualdade”. Em um estudo recente, desenvolvido ao lado dos pesquisadores Maria Teresa Alves (UFMG) e José Aguinaldo Fonseca (PUC-MG), Chico relata que uma análise de estudantes ao longo de nove anos do ensino fundamental mostrou que meninas brancas de nível socioeconômico alto se destacaram. Por outro lado, o grupo com menor trajetória regular foi o de meninos, pretos, de baixo nível socioeconômico. “É um absurdo! São 60 pontos de diferença”.

A solução, segundo o ex-presidente do Inep, passa por evitar generalizações baseadas em médias amplas e considerar os dados dos diferentes grupos sociais que formam nossa sociedade. “Ao celebrarmos resultados como o Ideb, devemos estar cientes de que essa celebração pode ser muito restrita, uma vez que muitos indivíduos ainda são deixados para trás. Não temos futuro algum ao dar tudo para poucos e nada para muitos. A desigualdade, nome prático da equidade, precisa vir para o centro”.

Outra forma de enfrentar a desigualdade, também apoiada em evidências, veio de Natalia Mota, psiquiatra, neurocientista e cientista-chefe da Motrix Techknowledge, e professora IPUB-UFRJ (Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro), que mostrou como um aplicativo que avalia o comportamento de comunicar e contar histórias também pode ser um preditor do desenvolvimento do estudante. “Quanto mais estamos imersos no ambiente escolar e mais contato temos com a linguagem escrita, mais complexa se torna nossa forma de comunicação. Esse é um processo que se intensifica significativamente com o avanço da escolarização”, disse Natalia, que também é fundadora e cientista-chefe da Mobile Brain, empresa focada no desenvolvimento de soluções baseadas em neurociência computacional para educação e saúde mental.

Segundo Natalia, outras questões também emergem da forma com que uma criança conta uma história, como o estágio de seu desenvolvimento, o que se torna particularmente importante para educadores, uma vez que mesmo quem não está apto a fazer um teste de leitura e escrita pode receber um diagnóstico, evitando assim ser subrepresentado. “De uma maneira leve, conseguimos escalar isso e observar numa população maior, incorporando elementos de representatividade e diversidade”, avalia.

Desenvolvido a partir do acompanhamento de crianças ao longo de dez anos, o aplicativo, descreve Natalia, pode ter uma função análoga à do pediatra que cuida do bem-estar físico e o ilustra em uma curva. “É possível observar, em larga escala, como a criança está desenvolvendo a complexidade de comunicação ao longo da trajetória escolar, identificando se está dentro do esperado, em qual percentil, como estão os grupos socioeconômicos”.

O desenvolvimento da comunicação sob influência da escolarização também é um indicador de boa saúde mental. O tema emergiu durante a pandemia de Covid-19 e necessita de estratégias educacionais específicas. Segundo Natália, é fundamental adotar abordagens proativas para fomentar um ambiente escolar que promova o bem-estar mental. Entre sugestões, estão a implementação de programas que incentivem discussões abertas sobre saúde mental, para reduzir o estigma e ampliar a compreensão do tema entre alunos e professores.

Outra medida importante é o desenvolvimento de políticas firmes de combate ao bullying, complementadas por programas de prevenção e suporte eficaz para as vítimas de assédio. Além disso, é a psiquiatra avalia que regular o impacto das tecnologias, particularmente das redes sociais, pode ter impacto positivo no bem-estar dos jovens. Para tanto, a escola deve promover hábitos saudáveis de uso de dispositivos eletrônicos e integrando no currículo discussões sobre os efeitos psicológicos dessas plataformas.

A 29ª edição da Bett Brasil vai até o dia 26 de abril, no Expo Center Norte. A expectativa da organização é receber mais de 35 mil pessoas, entre visitantes, congressistas, professores, alunos, especialistas, gestores públicos e empresários do setor educacional público e privado.

 

Fonte: Porvir.org

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